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Liji, Extratos do Livro dos Rituais (01)

LIKI, Cap. 9

Liyun – A Ordem Social

Os dois sistemas de sociedade humana

Um dia foi Confúcio ver a cerimônia de tsa (uma festa popular de inverno, fim de ano, durante a qual o povo sacrificava em oferenda a tôdas as criaturas animadas e inanimadas, e que terminava em dança). Finda a celebração, Confúcio pôs-se a andar. Deteve-se num abrigo para viajantes, junto ao portão da cidade (voltado para o subúrbio) e suspirou. Suspirou em vista das condições sociais de seu país, Lu. Yen Yen (Tseyu) estava com êle e perguntou: "Por que suspirais?" E Confúcio respondeu:

"Ah, eu suspirava pela Idade de Ouro, lamentando não ter podido nascer então para juntar-me aos sábios governantes e ministros. das Três Dinastias. Como eu teria gostado de viver naquela época!"

"Quando reinava o grande Tao (na Idade de Ouro) o mundo era propriedade comum (não pertencendo a nenhuma família dominante), os governantes eram escolhidos de acôrdo com a sua sabedoria e capacidade, havia paz e confiança mútua. Por isso as pessoas não tratavam apenas os próprios pais como pais e os próprios filhos como filhos. Os anciães sabiam prezar a sua ancianidade e os jovens sabiam usar o seu talento, os mais moços tinham os velhos por quem olhar, e as viúvas desamparadas, e os órfãos, e os mutilados e aleijados eram tratados com carinho. Os homens tinham afazeres específicos e as mulheres cuidavam dos lares. Como as pessoas não desejassem ver seus bens desperdiçados, não tinham motivo para os conservarem egoisticamente para si; e como as pessoas tivessem energia mais do que suficiente para o trabalho, não precisavam limitar-se a trabalhar só em proveito individual. Por isso não havia malícia nem intrigas, nem ladrões nem bandidos, e conseqüentemente não havia necessidade de cada qual fechar a sua porta (ao cair da noite). Assim era o período do tat'ung, ou a Grande Comunidade.

- "Agora, porém, já não reina o grande Tao e o mundo está dividido entre famílias adversas (tornou-se propriedade privada de algumas famílias), e as pessoas consideram como pais apenas os próprios pais e como filhos apenas os próprios filhos. Cada qual entesoura seus bens e trabalha apenas em proveito próprio. Estabeleceu-se uma aristocracia hereditária e os diversos Estados construíram cidades, cidadelas e fossos para sua defesa. Os princípios da li (condições de intercâmbio social) e do direito funcionam como simples regras de disciplina; por meio de tais princípios os cidadãos procuram manter a distinção oficial de governantes e governados, ensina-se aos pais e filhos e irmãos mais velhos ou mais moços e esposos e esposas a viverem em harmonia, estabelecem-se obrigações sociais, e vive-se em grupos de aldeias. Os mais fortes fisicamente e os mentalmente mais vivos galgam posições de relêvo, e cada um trata a sua própria vida. Daí a malícia e os ressentimentos, resultando em guerras. (Os grandes fundadores de dinastias como) Os Imperadores Yu, T'âng, Wen, Wu e Ch'eng, e o Duque Chou, foram os melhores homens desta época. Sem uma única exceção, foram todos seis profundamente ciosos dos princípios da li, mediante os quais a justiça foi mantida, a confiança geral foi instaurada, os êrros e equívocos foram banidos.- Um ideal de verdadeira humanidade, jen, foi estabelecido, e cultivaram-se as, boas maneiras e a cortesia como sólidos princípios a serem seguidos pelo povo. Qualquer autoridade que violasse tais princípios haveria de ser denunciada como inimigo público e destituída do cargo. Este se chama o Período da Hsiaok'ang ou "o Período da Paz Menor".

Evolução da Li ou Ordem Social
- "Tem a li, pois, tôda essa importância?" - tornou a perguntar Tseyu. E Confúcio respondeu:

- “Li é o princípio segundo o qual os antigos reis deram forma às leis do Céu e regularam as manifestações de natureza humana. Por isso, vive aquêle que alcança a li e morre aquêle que a perde. Diz o Livro dos Cantares”:

Vêde que até um rato possui t'i (corpo)...

e essa criatura humana não tem li!

Se uma criatura humana não tem li -

então por que é que ela não vai e morre?

“Portanto a li baseia-se no Céu, padroniza-se na Terra, trata do culto aos espíritos e estende-se aos rituais e cerimônias fúnebres, sacrifícios em honra aos ancestrais, arco e flecha, condução de veículos, investidura, núpcias, e audiências na côrte ou troca de visitas diplomáticas. Por isto o Sábio apresenta ao povo o princípio de uma ordem social racionalizada e através dêle tôdas as coisas vão bem no seio da família, na cidade e no mundo."

- "Podeis explicar-me completamente o que.seja essa li?" - insistiu Tseyu.

Confúcio: - "Eu queria assistir às antigas práticas da Dinastia Hsia (2205-1784 A. C.) e para isso visitei a cidade de Chi (onde viviam os descendentes dos governantes Hsia) , mas verifiquei que os costumes remanescentes não eram bastantes; lá consegui, no entanto, uma cópia do livro Hsiashih. Também quis assistir às antigas práticas da Dinastia Shang (ou Yin, 1783- 1123 A. C.) e com êsse propósito fui à cidade de Sung (onde viviam os descendentes dos governantes Shang), mas verifiquei que aí tampouco restavam bastantes vestígios; consegui, não obstante, uma cópia do K'unch'ien (versão do Livro das Mutações). Com auxílio dêsses dois livros, o Hsiashih e o K'unch'ien procurei estudar os costumes antigos.

No comêço, li (civilização) surgiu com a comida e bebida. O povo assava milho e carne de porco, cortados à mão, em lascas de pedra aquecidas. Cavavam buracos no chão, à maneira de vasilhames, e bebiam diretamente nas conchas das mãos. Modelavam em barro seus tambores e as baquetas, materiais êsses que parece terem-se provado à altura de seus cultos aos espíritos. Quando morria alguém, os parentes subiam ao telhado e gritavam bem alto, ao espírito: "Ahoooooo! Fulano, quereis fazer o obséquio de voltar ao vosso corpo?" (Se o espírito não voltava, e a pessoa estava realmente morta) então assavam arroz cru e carne assada para oferendas, levantavam a cabeça para o céu "a fim de ver longe" (wang) o espírito e enterravam o cadáver. O elemento material descia então (à terra) e o elemento espiritual subia (ao firmamento). Os mortos eram enterrados com a cabeça na direção norte, e os vivos tinham suas casas com o frontispício voltado para o sul. Tais eram os costumes primitivos.

Antigamente os governantes não possuíam casas; moravam em grutas escavadas ou em abrigos de madeira empilhada, no inverno, e em ninhos feitos com ramos secos (na copa de árvores) durante o verão. Não conheciam os usos do fogo; comiam frutos e a carne de aves e animais, bebendo-lhes o sangue. Não tinham sêdas nem outros tecidos, vestiam-se com penas e peles de animais. Mais tarde vieram os Sábios, que lhes ensinaram a utilizar o fogo e a fundir metais em moldes de bambu e a modelar o barro em vasilhas. Então construíram galpões e casas com portas e janelas, e passaram a chamuscar e fumegar e cozer e assar a carne em espetos, e fabricaram o vinho e o vinagre. Começaram também a usar tecidos de fibras e sêdas, preparando as vestes para uso dos vivos e oferendas aos mortos e cultos aos espíritos e a Deus[i]. Tais práticas foram também herdadas dos primórdios. Por isso, guardava-se o vinho escuro no aposento interior, o vinho branco junto à porta do sul, o vinho tinto no vestíbulo e o vinho mosto do lado de fora. As oferendas de carnes eram então preparadas, e o tripé redondo e o vaso quadrangular postos em ordem, e os instrumentos de música - o ch'in, o sebo a flauta, o ching (pedra musical suspensa por um fio e batida como gongo), os guizos e tambores, tudo nos seus lugares, e a oração do sacrifício aos mortos e a de resposta dos mortos[ii] eram cuidadosamente elaboradas e lidas a fim de que os espíritos do céu e os dos ancestrais pudessem baixar ao lugar do culto. Tôdas essas práticas tinham o propósito de manter a devida distinção entre governantes e governados, preservar o amor entre pais e filhos, incutir a gentileza entre os irmãos, regular as relações entre superiores e subalternos, e estabelecer de parte a parte as condições de convívio entre marido e mulher, para que sobre todos pairasse a bênção do Céu. Preparavam-se então as lamentações do sacrifício. O vinho negro ou escuro era empregado nas libações, e o sangue e o pêlo dos animais era usado nas oferendas, e a carne crua colocava-se num vaso quadrangular. Também se oferecia carne assada; abria-se uma esteira no chão e cobriam-se os vasos com uma peça de tecido rústico, e as indumentárias que se vestiam para a cerimônia eram de sêda. Os diversos vinhos, li e chien, carnes assadas e de fumeiro, também se usavam nas oferendas. O soberano e a rainha procediam ao oferecimento alternadamente, a fim de que os bons espíritos pudessem baixar e êles se integrassem no mundo oculto. Após os sacrifícios, propiciava-se então uma festa aos hóspedes, dividindo os cães e porcos e as reses e ovelhas da oferenda e distribuindo-os em vasilhames diversos. A oração aos mortos proclamava a gratidão e lealdade dos viventes, e a resposta dos mortos sugeria a sua contínua afeição aos vivos. Tal era o grandioso e abençoado sentido da li." Confúcio: - "Ora, eu estudei as práticas da Dinastia Chou (sob a qual vivia Confúcio) , mas (os maus imperadores) Yu e Li destruíram-nas completamente. Para onde me hei de voltar, senão para o país de Lu?" [trecho omitido]

Li constitui, pois, para um soberano, a grande arma ou instrumento de poder, com que conjurar os maus hábitos e os começos de desordem, realizar sacrifícios e oferendas aos espíritos, estabelecer os quadros da vida social, distinguir os procedimentos do amor e do dever. É o meto pelo qual um país se governa e se mantém firme a posição do governante. Pois se o govêrno não é direito, a posição do soberano está ameaçada; e quando a posição do soberano é ameaçada, seus oficiais de maior autoridade tornam-se arrogantes e os de menor autoridade começam a prevaricar. Vêem-se então criminosos punidos com severas penas, mas a moralidade do povo assim mesmo se corrompe e verifica-se uma ausência geral de bons princípios. Com a falta de princípios generalizada, subverte-se a ordem social; e com a subversão da ordem social os mais aptos não poderão exercer devidamente seus ofícios. E quando os criminosos são punidos com severas penas e a moralidade do povo se corrompe, então os cidadãos já não serão fiéis a seu soberano, ou partirão para outros países. A isto se chama "um estado doentio".

Li com fundamento na Natureza Humana
A razão pela qual o Sábio é capaz de olhar o mundo como uma família e a China como uma pessoa (o que é verdadeiro como natureza humana em um homem há de ser verdadeiro para todos) é que êle não cria regras arbitrárias; procura, por outro lado, conhecer a natureza humana, definir as inclinações dos homens e chegar a uma noção bem clara do que seja bom ou mau para a humanidade. Eis o que o capacita. Em que consiste a natureza humana[iii]? São sete fatôres: alegria, cólera, tristeza, mêdo, amor, ódio, e desejo, sendo que nenhuma destas coisas precisa ser aprendida (são sentimentos naturais). Quais são os deveres dos homens? Bondade no pai, piedade no filho, gentileza no irmão mais velho, humildade e respeito no irmão mais môço, boa conduta no marido, fidelidade na espôsa, benevolência nos mais velhos e obediência nos mais jovens, benignidade no soberano e lealdade nos ministros - tais são os deveres humanos. O que é bom para a humanidade representa a paz e a confiança geral, e o que é mau para a humanidade representa a caça ao lucro, o roubo e o crime. Portanto, como poderia o Sábio - o governante ideal - abrir mão da li em seus esforços no sentido de cultivar os sete sentimentos e os dez deveres humanos, e promover a confiança mútua e a paz e a civilidade e aplacar a sanha do lucro e o roubo?

Comida, bebida e sexo - são os grandes desejos da espécie humana; morte. sofrimento e pobreza - são os grandes temores ou aversões da espécie humana. Desejo e temor (aspiração e repulsa) são as grandes fôrças motrizes do coração humano. Todavia, escondem-se no coração e via de regra não se manifestam; o coração humano é insondável. Que outro meio haveria, senão a li, que sozinho permitisse explorar o coração humano?

A criatura humana é produto das fôrças do céu e da terra, da união dos princípios yin e yang. encarnação da substância e da essência dos cinco elementos (metal, madeira, água, fogo e terra). Por isso a criatura humana é o centro do universo resultante máxima dos cinco elementos. criada para fruir alimento e côr e som.

Li com fundamento no Céu (Natureza)

O culto ao Céu tem por fim reconhecer os supremos desígnios celestes. O culto ao deus terrestre tem por fim demonstrar a produtividade da terra. O culto no templo ancestral tem por fim patentear a linhagem do homem. O culto às montanhas e aos rios tem por fim atender aos diferentes espíritos. Os cinco sacrifícios[iv] têm por fim celebrar as atividades humanas. Para isto há Sacerdotes no templo. três Altos Ministros na côrte, três Superiores no colégio. O arauto coloca-se em pé adiante do rei, o historiador oficial em pé atrás do rei, ao passo que o sacerdote incumbido dos oráculos e o mestre de música e seus assistentes colocam-se à sua direita e à sua esquerda; o soberano fica ao centro, sentado, com o coração tranqüilo - guardião (ou símbolo) da suprema perfeição de tôdas as coisas.

Quando se observa a li no culto ao Céu. os vários deuses atendem às respectivas atribuições. Quando se observa a li no culto à Terra, os bens terrenos crescem e se multiplicam. Quando se observa a li no templo ancestral, a afeição e a piedade filiais prevalecem. Quando se observa a li nos cinco sacrifícios, as medidas padrões são estabelecidas. Portanto o culto ao Céu, à Terra, aos antepassados, às montanhas e aos rios, e os cinco sacrifícios, visam preservar as condições da existência humana e constituem a configuração da li.

A li tem sua origem na T'aiyi (Unidade Primeira[v]), que se dividiu em Céu e Terra, transformando-se em yin e yang, atuando através das estações do ano e tomando forma segundo os diferentes espíritos. A vontade dos deuses manifesta-se como destino, sob contrôle do Céu.

Assim deve a li ter o Céu por fundamento, exerce na Terra a sua ação e aplica-se às diferentes atividades humanas, mudando de acôrdo com as estações do ano e os vários ofícios. No ser humano, a li surge como princípio vital e manifesta-se no trabalho, no comércio, no convívio social, no comer e no beber, na cerimônia da "investidura" do que atinge à maioridade, no casamento, nos funerais e nos sacrifícios aos mortos, na carreira das armas, na condução de veículos, e nas audiências em palácio.

Os ditames da li constituem, portanto, os princípios fundamentais da vida humana, servindo para promover a confiança mútua e a harmonia social, fortalecendo as ligações sociais e os laços de amizade; constituem os princípios fundamentais do culto aos espíritos, da subsistência dos vivos e das oferendas aos mortos[vi]. Li é um vasto canal através do qual seguimos os desígnios do Céu e conduzimos ao bem as expressões do coração humano. Por isto, somente o Sábio reconhece que a li é indispensável. Para destruir um reino, arruinar uma família ou perder um homem - o que tendes a fazer em primeiro lugar é extirpar-lhes o senso da li.

O método de cultivo da Li
A li é para o homem o que o fermento é para o vinho: o homem superior tem mais, o inferior tem menos, Por isto o Sábio, ou o santo governante, cultiva a instauração dos deveres e da ordem segundo a li como meio de reger e controlar a natureza humana. A natureza humana é, pois, o campo cultivado pelo Sábio, o santo governante: ara-o êle com a li, planta-o com a semente dos deveres, limpa-o com a educação e a instrução, procede à colheita com verdadeira humanidade, e goza-o com música. Portanto, a li não é senão a cristalização do direito. Se uma coisa está de acôrdo com os padrões do direito, novas práticas sociais são instituídas, embora as ignorassem os governantes do passado. Exemplo do direito[vii] é o encaminhamento de cada classe de pessoas em seu próprio setor, e assim se articula a verdadeira humanidade. Aquêles que seguem o direito, observando o caminho adequado e cultivando a verdadeira humanidade, tornar-se-ão hábeis administradores. A verdadeira humanidade constitui a base da conduta apropriada e encarna a adequação aos padrões do direito. Aquêles que atingiram à verdadeira humanidade tornam-se líderes da espécie humana.

Segue-se, pois, que governar um país sem li é como revolver um campo sem arado. Observar a li sem base nos padrões do direito é como arar o campo e esquecer-se de plantar as sementes. Procurar o direito sem cultivar o conhecimento é como plantar as sementes sem limpar o terreno. Cultivar o conhecimento sem subordiná-lo aos propósitos da verdadeira humanidade é como lavrar o campo e não fazer colheita. E chegar à etapa da verdadeira humanidade sem deliciar-se com ela através da música é como colher e não comer o que foi colhido. Desfrutar a verdadeira humanidade através da música e não chegar à completa harmonia com a natureza é como comer e não ficar nutrido, ou saudável.

Quando os membros são bem desenvolvidos e a pele é clara e a carne é maciça, isto é saúde na vida corporal. Quando pais e filhos têm mútuo afeto, os irmãos são bons uns para os outros, e marido e mulher vivem em harmonia, isto é saúde na vida doméstica. Quando as altas autoridades acatam a lei e os funcionários subalternos procedem com lisura, sendo reguladas e bem definidas as atribuições do rei e os ministros auxiliando-se uns aos outros no bom caminho, isto é saúde nacional. Quando o imperador viaja na carruagem da Virtude, tendo a Música por guia, e os governantes tratam-se com cortesia, e os mestres emulam-se conforme os padrões da honestidade, e os cidadãos se unem pela paz, isto é a saúde do mundo. A isso se chama Grande Harmonia (Tashun).



LIKI, Cap. 18

Hsuehchi – Sobre a Educação
A necessidade da educação
A vontade de agir corretamente e a procura do que é bom dariam a uma pessoa certa reputação, mas não as tornariam capaz de influir sobre as massas. A adesão a homens hábeis e sábios e a acolhida aos que chegam de países longínquos, fariam uma pessoa capaz de influir sôbre as massas mas não a habilitariam a civilizar o povo. Para o homem superior, a única maneira de civilizar o povo e instituir bons costumes sociais é pela educação. Por isso os antigos soberanos consideravam a educação como o elemento mais importante, em seus esforços por implantar a ordem no país. Tal é o sentido daquela passagem do Conselho a Pu Yueh (do Rei Kaotsung, da Dinastia Hsia; hoje constitui um capítulo do Shuking) que diz: "Pensai sempre na educação." Assim como uma pessoa não pode saber o gôsto de um alimento sem o ter provado, por melhor que seja, tampouco se poderá, sem a educação, chegar a conhecer as excelências de um vasto acervo de conhecimentos, mesmo que êles aí estejam.

Só por meio da educação, pois, tornar-se-á alguém insatisfeito com o que sabe; e só quando tem de ensinar a outrem é que a gente dá-se conta da incômoda insuficiência dos próprios conhecimentos. Insatisfeita com o que sabe, a pessoa então percebe que é seu o mal, e dando-se conta da incômoda insuficiência de seus conhecimentos sentir-se-á impelida a aprimorar-se. Por isto se diz que "os processos de ensinar e aprender estimulam-se um ao outro". Tal é o sentido daquela passagem do Conselho a Pu Yueh que diz: "Ensinar é metade do aprender."

O antigo sistema educacional

O antigo sistema educacional era o seguinte: havia uma escola primária em cada povoado de 25 famílias, uma escola secundária em cada cidade de 500 famílias, uma academia em cada território de 2.500 famílias. e uma universidade na capital de cada Estado (para a educação dos príncipes e os filhos da nobreza e os melhores alunos das escolas menos graduadas). Todo alto admitiam-se novos estudantes, que no ano seguinte prestavam exames[viii]. No final do primeiro ano, procedia-se a uma tentativa de verificar até que ponto os alunos sabiam pontuar seus escritos e descobrir suas vocações. No fim de três anos. procurava-se determinar os hábitos de estudo dos alunos e sua vida grupal. No fim de cinco anos investigava-se até onde iam os conhecimentos gerais dos alunos e até que ponto êles haviam acompanhado os preceptores. No fim de sete anos, observava-se como se haviam desenvolvido as idéias dos alunos e que espécie de amigos cada qual es- colhera para si. A isto se dava o título de Grau Menor (hsiaoch'eng - das séries inferiores). Ao cabo de nove anos era de esperar-se que o aluno dominasse as várias matérias estudadas e tivesse uma compreensão geral da vida, tendo outrossim firmado o próprio caráter em bases de onde não pudesse retroceder. A isto se dava o título de Grau Maior[ix] (tach'eng - das séries superiores).

Apenas com êste sistema educacional, entretanto, é possível civilizar o povo e reformar a moral da nação, de maneira que os cidadãos se sintam felizes e os habitantes de outras terras gostem de visitar o país. Tal é o fundamento da tahsueh, ou educação superior. E outro não é o sentido daquela passagem dos Documentos Antigos que diz: As formigas estão sempre ocupadas (da importância do estudo continuado)."

Na universidade os discípulos principiam a estudar o uso adequado dos trajes cerimoniais e das oferendas vegetais por ocasião dos sacrifícios. a fim de se imbuírem do senso de respeito ou piedade. Faz-se com que êles cantem as três primeiras páginas do Hsiaoya[x] a fim de que aprendam as primeiras noções do ofício.

Ao entrarem os novatos na universidade. ouvem soar um gongo antes mesmo de desembrulharem os seus livros - como a incutir-lhes disciplina para o estudo. É empregada a palmatória ou bastão para reger-lhes o comportamento. Nenhum inspetor é enviado à universidade, exceto na ocasião do Grande Sacrifício aos antepassados reais[xi], a fim de que os estudantes fiquem à vontade para se desenvolverem. O preceptor os observa, mas não lhes dá lições ininterruptas, a fim de que os estudantes tenham tempo de meditar nos assuntos por si mesmos. Os mais jovens devem ouvir e não fazer perguntas, reconhecendo a sua posição. Estas sete coisas constituem os principais fatores do ensino. Tal é o senão daquela passagem dos Documentos Antigos[xii], que diz: "Na universidade, aquêles que já têm uma vocação estudam o que lhes diz respeito, enquanto que aquêles que ainda não escolheram um ofício observam o que pretenderão fazer mais tarde."

Estudos Extracurriculares

No regime educacional da universidade, há estudos regulares (em aula) e estudos extracurriculares que os alunos realizam em seus aposentos. Sem exercitar os dedos, não se pode aprender a tocar com destreza um instrumento de cordas. Sem uma ampla visão das coisas[xiii] não se pode assimilar facilmente a poesia. Sem estar familiarizado com os diversos trajes cerimoniais não se pode apreender o estudo dos ritos. Sem conhecer as várias artes (inclusive manejo de arco e flecha, e a condução de veículos) não se pode apreciar o aprendizado colegial. Por isso, na educação do homem superior (da elite intelectual) dá-se a cada qual o tempo suficiente para aprender coisas e cultivar coisas, tempo para repouso e para recreio. Assim os estudantes passam a sentir-se no colégio como em suas próprias casas e a estabelecer relações pessoais com os professores, a prezar os amigos e a firmar convicção das próprias idéias. Podem, então, afastar-se dos mestres sem dar as costas ao estudo. Tal é o sentido daquela passagem do Conselho a Fu Yeh, que diz: Conservai sempre o amor ao estudo, e colhereis os resultados."

Os preceptores de hoje limitam-se a repetir coisas, como realejos, a aborrecer os alunos com perguntas freqüentes e a repetir-se incessantemente. Não procuram descobrir a inclinação natural de cada um, e assim os estudantes são levados a fingir amor aos estudos, sem que nada se faça por explorar o que há de melhor em seus talentos. O que se fornece aos estudantes é errado, e não menos errado é o que dêles se espera. Resultado: os alunos aprendem às escondidas as coisas de que gostam e detestam os professores , exasperam-se com as dificuldades do curso e não reconhecem nêle o bem que lhes traz. Ainda que passem regularmente por tôdas as séries, uma vez completado o período de colégio. já se apressuram em deixá-lo. Eis por que falha a educação em nossos dias.

O Professor Ideal

Os fatôres da educação colegial são - 1) prevenção, ou seja, prevenir os maus hábitos antes que surjam; 2) oportunidade, ou seja, apresentar ao estudante somente as coisas para as quais êle esteja preparado; 3) ordem, ou seja. ministrar as diversas matérias em sucessão adequada; 4) emulação (literalmente: “fricção"), ou seja, fazer com que os estudantes admirem as qualidades dos demais. esses quatro fatôres asseguram o êxito da educação.

Por outro lado, coibir os maus hábitos uma vez arraigados pareceria algo adverso às inclinações de cada um e tentar corrigi-los já não daria resultado. Instruir os alunos depois de ultrapassada a idade escolar tornaria o aprendizado difícil e fútil. Deixar de ministrar os ensinamentos na devida ordem poria os alunos em confusão quanto à matéria ensinada e tampouco os resultados seriam bons. Estudar a sós qualquer assunto. sem colegas com quem trocar idéias, acarretaria a estreiteza mental do aluno. à falta de conhecimento geral. As más companhias induziriam o estudante a colocar-se contra os professôres, e os maus antecedentes levá-lo-iam a negligenciar os estudos. Esses fatôres, seis ao todo, são os que podem arruinar a educação colegial.

Conhecendo os fatôres de êxito e os do fracasso da educação, o homem superior está pois qualificado para ser professor.

Ao ensinar, o homem superior orienta seus discípulos sem arrastá-los; convida-os a avançar mas não os coage; abre-lhes os caminhos mas não os força a caminhar. Orientando sem arrastar, torna o aprendizado agradável; convidando sem coagir, torna o aprendizado fácil; abrindo o caminho sem forçar à caminhada, faz com que os alunos pensem por si mesmos. Ora, um homem que torna agradável e fácil o aprendizado e faz com que os estudantes pensem por si mesmos será o que se pode chamar um bom professor.

Há na educação quatro inconvenientes muito comuns, contra os quais deve precaver-se o professor. Certos estudantes procuram aprender demais ou demasiados assuntos, outros aprendem pouco ou poucos assuntos, alguns aprendem com demasiada facilidade, outros facilmente perdem o ânimo. Essas coisas demonstram que os indivíduos diferem quanto aos dotes mentais, e só mediante o conhecimento dêsses dotes o professor poderá corrigir as respectivas falhas: o professor não é senão um homem que faz por incrementar o que há de bom e remediar o que há de mau em seus pupilos.

Um bom cantor leva os circunstantes a seguirem- lhe o canto, um bom educador leva os circunstantes a seguirem-lhe o ideal: sua palavra é concisa mas expressiva, ocasional mas rica de sentido, e êle tem ainda a habilidade de esboçar engenhosos exemplos que o façam melhor compreendido pelos demais. Assim, pode-se dizer um bom homem aquêle que faz com que outros lhe sigam o ideal.

O homem superior sabe o que é difícil e o que é fácil, o que é excelente e o que é deplorável, entre as coisas que se devem aprender - e por isso é hábil em fornecer exemplos. Sendo hábil no exemplificar, sabe portanto ensinar. Sabendo ensinar, saberá ser pai. Sabendo ser pai, saberá governar os homens. Dêsse modo, o magistério é a arte de aprender a governar os homens. Eis por que nunca é excessivo o cuidado com que se escolhem os professôres. Tal é o sentido daquele trecho dos Documentos Antigos que diz: "Os Três Reis e as Quatro Dinastias (Hsia, Shang e Chou) davam a maior importância à escolha dos professôres."

Ainda no setor da educação, o mais difícil é criar o respeito ao professor. Quando se respeita o professor respeitam-se os seus ensinamentos, e quando se lhe respeitam os ensinamentos respeitam-se a instrução e cultura. Por isso há duas espécies de cidadãos que o rei não ousa considerar como vassalos: o professor e o shih (criança que representa o espírito dos mortos nos sacrifícios). Segundo as praxes colegiais, um professor não precisa pôr-se de pé com a face voltada para o norte mesmo ao receber um édito do rei - o que é prova de grande respeito real ao professor.

O método de instrução

Com um bom aluno o professor não terá muito que fazer e colherá em dôbro os resultados, além de granjear o respeito do estudante. Com um mau aluno o professor tem de fazer esfôrço e colhe em resultado apenas a metade do que seria de esperar, além de ficar antipatizado pelo estudante. Um bom argüidor faz como o rachador de lenha - começa pela parte mais fácil, deixando os nós para depois, e ao fim de algum tempo aluno e professor chegam à compreensão da matéria até com certa sensação de prazer; o mau argüidor faz exatamente o contrário. O bom respondedor de perguntas é como um conjunto de guizos - quando se tange o maior, o menor vibra, e quando se tange o menor, o maior vibra, sendo apenas preciso dar tempo a que esmaeçam os respectivos sons; o mau respondedor é exatamente o contrário disto. Eis algumas sugestões quanto aos processos de ensinar e aprender.

O tipo de cultura que recorre à memorização de coisas, com o fim de dar resposta a certas perguntas, não qualifica a ninguém para ser professor. Um bom professor há de observar as conversas dos alunos; quando percebe que um dêles está fazendo o máximo e não encontra a solução, então vai a êle e o esclarece - e se após a explicação o estudante não compreende, então é sinal de que ainda não está à altura do assunto e deve deixá-lo de lado.

O filho de um pensador naturalmente aprenderá a coser roupas de peles, e o filho do exímio fabricante de armas naturalmente aprenderá a fazer um chi (espécie de cêsto, feito de tiras de bambu trançadas, para guardar grãos), e o amansador de cavalos começará por amarrá-los atrás da carruagem: a partir dessas três noções o gentil-homem é capaz de aferir o melhor método educativo. Os doutôres da Antigüidade valiam-se da analogia para o estudo da verdade nas coisas.

O tambor não chega a produzir em si nenhuma das cinco notas musicais. e tampouco as cinco notas conseguem pôr-se em ritmo sem o tambor. A água não possui nenhuma das cinco cores, e todavia (na pintura) as cinco côres não poderiam brilhar sem a água. O conhecimento em si não se subordina a nenhum dos cinco sentidos, e no entanto os cinco sentidos nunca serão bem desenvolvidos se faltar o conhecimento. a professor não se filia às cinco categorias da hierarquia do clã, e entretanto não se uniriam pelo amor as cinco categorias hierárquicas do clã sem o professor.

O gentil-homem diz: “Uma personalidade forte não se adapta (necessariamente) a determinada profissão. Um grande caráter não qualifica (necessariamente) alguém para determinado serviço. Uma firme honestidade não faz (necessariamente) com que o homem mantenha sua palavra. Uma alta noção de tempo não torna (necessariamente) pontual a pessoa". Saber estas quatro coisas é realmente saber as coisas fundamentais da vida.

Ao fazerem suas oferendas aos deuses fluviais, os antigos reis sempre começavam o culto pelos deuses dos rios, antes de celebrarem aos deuses dos mares; foi estabelecida uma distinção entre a nascente e a foz, e saber essa distinção é saber o essencial.


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[i] Havia um culto religioso ao "Governante Supremo, Shangti (expressão usada hoje em dia pelos cristãos chineses), e outro ao "Céu" ou T'ien; as oferendas usadas nas adorações a Shangti e T' ien eram diversas, e êsses cultos eram praticados por tribos diferentes. No tempo de Confúcio já reinava grande confusão, as duas religiões misturando-se uma à outra; o próprio Confúcio declarou em várias ocasiões a impossibilidade de reconstituir as antigas práticas do culto ao Céu e que, se isto chegasse a ser feito, coisa bem simples seria então governar o país. No fundo, o que pretendia o Mestre fôra a restauração da antiga teocracia.

[ii] A resposta era lida por uma criancinha, intitulada shih, que representava os mortos. Shih é figura proeminente em todos os cultos aos mortos, mesmo nos tempos modernos.

[iii] As expressões chinesas relativas a natureza", "emoções", "coração", "mente", "desejo", etc., excedem em conteúdo as palavras ocidentais correspondentes. Hsin significa, ao mesmo tempo, "o coração" e "a mente"; hsing significa "inclinação natural", "instinto"; ch'ing significa (no texto em questão) "natureza", "sentimentos naturais", "emoções"; chih significa "o desejo", "direção da mente", "esperança", "ambição", "aspirações"; yi significa "idéia", "intenção"; yu significa "desejo"; jen significa "caráter", "formação moral", "verdadeira humanidade"; chih (outro ideograma) significa "sabedoria", "o intelecto".

[iv] Existem cinco interpretações diversas dêsses cinco sacrifícios: uma que os interpreta como culto aos cinco elementos, outra que os vê como sendo o culto à porta. à rua, à porta de uma só banda, à cozinha e ao pátio central, etc.

[v] Pelo Livro dos Cantares, os fenômenos dêste mundo reduzem-se à ação ou interação dos dois princípios - yin e yang - que por sua vez derivam da Unidade Primeira.

[vi] Li neste ponto aparece como princípio religioso, marcadamente, e. isso explica a ênfase demasiada que se dá às cerimônias funerais no esquema confuciano. São exaustivas as descrições de cerimônias fúnebres contidas no Liki.

[vii] A palavra chinesa é yi. que no caso parece referir-se aos dez deveres estabelecidos para as relações humanas; trata-se, portanto, de uma conceituação objetiva do principio geral da li. Li e yi muitas vêzes formam uma frase, difícil de traduzir, mas apresentada acima como "os deveres da li”. A interpretação oficial chinesa de yi é a de que significa "o que é direito" ou correto, conveniente. Jen interpreta-se como "verdadeira humanidade", configurando o ideal confuciano do homem de verdade, ou seja o homem completo, perfeito.

[viii] “Cada outro ano" seria a tradução literal. A expressão chung nien, todavia, pode significar "no meio do ano", ou ainda "no ano intermediário" ( ou em anos alternados) . Segundo o Chouli, porém, consta que havia um grande exame de três em três anos.

[ix]Segundo o Neitseh (LI-KI, Capitulo XII) a idade de admissão às escolas seria a dos dez anos. O estudo de música, poesia, dança e manejo de armas, começava aos treze. Isto parece indicar um programa de nove anos, dos dez aos dezenove, considerando-se talvez como “instrução superior" os dois últimos anos entre o Grau Menor e o Grau Maior. Aos vinte anos começa a educação universitária. Supõe-se que os varões casavam-se aos trinta e as mulheres aos vinte, no máximo aos vinte e três anos. "por motivos especiais".

[x] A terceira parte do atual Livro dos Cantares, enfeixando as canções clássicas de Chou. As três primeiras peças, aqui referidas, seriam talvez as usadas nos jantares oferecidos pelo imperador aos seus ministros.

[xi] Não coincidem os dados relativos a êsse Grande Sacrifício; alguns o tomam pelo sacrifício anual de verão, outros, com certa cerimônia realizada de cinco em cinco anos.

[xii] Há numerosas referências aos Documentos Antigos, ao longo dos livros confucianos e outros escritos da Dinastia Chou. É dêsses documentos antigos que se extrai o atual Liki. Por outro lado, a coleção Pequena Tai, às vêzes mencionada hoje como Liki e que consiste em 49 capítulos ou livros. difere da coleção Grande Tai, que abrange 85 capítulos, sendo apenas dois comuns a ambas. Certo autor refere que a Grande Tai seria uma recopilação da coleção primitiva, constante de 204 capítulos ou livros, reduzindo-os a 85. Os documentos antigos eram, pois, uma heterogênea coleção de escritos, fossem os anteriores a Confúcio, fossem os que seus discípulos escreveram, passando das mãos dos preceptores às dos que se iniciavam na escola confuciana. Há inúmeras referências a trechos, dêsses "documentos", que não se encontram na atual versão do Liki

[xiii] O Livro dos Cantares está cheio de nomes de insetos, peixes, pássaros, animais, flores e árvores. Certos comentários do Livro dos Cantares são verdadeiros estudos de zoologia e botânica.