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Os Montes e os Mares - Shanhaijing

O Shanhaijing, ou Tratado dos Montes e dos Mares é um livro sobre a geografia fantástica e mitológica da China Antiga. Aparentemente o livro é uma coletânea de terras estranhas, mitos, animais exóticos e sagrados, figuras fabulosas e eventos miraculosos cuja validade já era discutida pelos sábios chineses desde a época Zhou. Sua redação data da época Han, provavelmente século I d.C., inserido num novo estilo de prosa descritiva que atendia aos mais diversos fins, fossem religiosos ou meramente lúdicos.



Extratos do Shanhaijing

O País dos Gigantes, do Shanhaijing (Clássico das Montanhas e dos Mares)

Um dia, encontrava-se Da Yu à procura de um lugar para a drenagem das águas quando chegou a uma grande ilha chamada Bogushan, situada a leste do Mar Bohai, perto do lugar do nascer do Sol e da Lua. Depois de atracar o seu barco, Da Yu anteviu ao longe uma colina, mas depois de caminhar mais de uma dezena li na sua direção, pôde ver que a colina não era mais do que um enorme edifício de cor pardacenta. Sobre o portão de entrada estava colocada uma tabuleta onde estava escrito: Palácio dos Gigantes. No centro do salão principal estava um gigante com os seus dois grandes braços abertos pronunciando um discurso, em volta deste encontravam-se outros cinco ou seis gigantes de cócoras. De há muito que Da Yu já tinha ouvido falar de um país de gigantes chamado Long Bo, a leste do Mar Bohai, cujos habitantes eram descendentes dum dragão, chegando eles a atingirem cerca de trinta e tantos metros de altura e sendo o seu prazo de crescimento trinta e seis anos. À nascença, já os imberbes tinham fartos cabelos brancos e a sua altura ultrapassava a dos homens normais.

Na realidade, o Palácio dos Gigantes não era mais do que um enorme salão de assembléia onde os gigantes se reuniam para discutirem assuntos pertinentes ao seu país. A vozearia dos gigantes era tão forte que, dir-se-ia, ser o ribombar de grandes tambores e, não podendo suportar tal barulho, Da Yu afastou-se do edifício voltando à orla do mar.

A pouca distância da praia, Da Yu avistou um gigante que estava pescando num barco minúsculo para ele mas que, de fato, era tão grande como um navio militar. Havia ainda outros que estavam pescando de pé dentro da água, as maciças ondas do mar encape- lado chegava-lhes somente às suas cinturas. De repente, dois gigantes gritaram de alegria e arremessaram um peixe à praia que não era nada menos do que uma baleia! No entanto, a baleia seria só suficiente para a refeição de uns poucos gigantes.

O que estava acontecendo mantinha Da Yu totalmente absorto quando, de súbito, ouviu um grande ruído de passos rebentar-se nas suas costas. Virou-se e vendo que um gigante estava caminhando em direção a ele e se preparava para, inadvertidamente, precipitar o seu pé - tão grande como uma pequena embarcação - sobre a sua cabeça, Da Yu gritou a toda força:

- Ei, toma atenção! Perplexo, o gigante inclinou-se à procura da origem da voz que lhe tinha soado tão fraca como o zumbido de um mosquito. Na sua terra natal, Da Yu era considerado como um homem alto e forte, mas no país dos gigantes a sua estatura não ia para além do calcanhar se um gigante.

- Mas donde vens tu? - perguntou o gigante a Da Yu num tom surpreso, contudo, suave.

- De muito longe - respondeu-lhe Da Yu apontando em direção do oeste. - Vim aqui ter a fim de procurar um lugar ideal para drenar as inundações.

O prosseguimento da conversa entre ambos acabou por atrair a atenção dos outros gigantes que rodearam Da Yu, uns sentando-se na areia e outros, simplesmente, de cócoras, pondo-se em breve todos a discutirem sobre os meios de se dominarem as águas. Assim, eles disseram-lhe que no mar, a pouca distância de Bogushan, havia um lugar chamado Gui Xu que era na realidade um vale sem fundo e que este vale, provavelmente, seria o local ideal para vir a ser o vazadouro das inundações - bastaria somente que as inundações fossem canalizadas ao rio Amarelo que então drenaria as suas águas no imenso mar.

Mas as desembocaduras do rio Amarelo estão há muito entupidas! - retorquiu Da Yu. - Será preciso dedicar colossais esforços antes que nós, os humanos, consigamos, dragar o seu sedimento.

- Mas nós podemos ajudar nesse aspecto - responderam em uníssono os gigantes.

Assim, pouco tempo depois, guiados por Da Yu, alguns dos gigantes foram ao delta do rio Amarelo e de pé, no meio da água do rio, com os seus possantes braços e grandes mãos, começaram a dragar o sedimento lançando-o ao mar. Bastaram poucos instantes apenas para que as águas do rio começassem a correr impetuosamente para o mar. Da Yu tendo ficado rejubilante apresentou-lhes os seus agradecimentos em nome de todos os povos. Porém, ele não se atreveu a convidá-los a visitar o seu país natal, preocupado de que os gigantes pudessem incautamente vir a pisar casas ou pessoas, destruindo-as ou matando-as, durante a sua estadia.

O País dos Anões, do Shanhaijing (Clássico das Montanhas e dos Mares)
Ainda mais longínquo que o Mar do Sul, havia um país chamado Jiao Jiao onde viviam apenas anões. Um dia, fatigado após uma longa viagem, Da Yu deitou-se numa praia desse país aí adormecendo. Ao despertar sentiu-se invadido por umas cócegas insuportáveis, como se muitos e minúsculos insetos estivessem subindo sobre o seu corpo. Depois de observá-los de maneira minuciosa, Da Yu descobriu que estes não eram mais do que pequenos anões com duas ou três polegadas de altura, que subiam aos seus ombros tal como se fossem alpinistas. Excetuando a sua altura, os anões tinham a mesma fisionomia que a dos homens normais e vestiam o mesmo estilo de indumentária.

Repleto de curiosidade, Da Yu continuou observando-os sem mexer o seu corpo. Equipe após equipe, os anões estavam, agora, subindo ativamente pelos seus braços e pernas, uns mesmo a cavalo e outros, conduzindo matilhas de cães. No entanto, os cavalos eram do tamanho de pequenas rãs, enquanto os cães de caça não maiores do que grilos. À frente de todos, um valente correu para a ponta do nariz de Da Yu empunhando uma bandeira nas mãos. Seguindo o porta-bandeira, um pequeno exército marchava a passos ritmados, seguindo palavras de comando, mas a voz era tão fraca, que Da Yu não conseguiu entender nada. Quando o pioneiro chegou à ponta do seu nariz e tentou introduzir o estandarte dentro de uma das suas narinas, Da Yu sentiu tamanhas cócegas que teve de levantar-se e dar um enorme espirro provocando assim um enorme desastre, fazendo com que todos os anões caíssem rebolando conjuntamente com seus cavalos e cães de caça.

Somente nesse momento, Da Yu veio a aperceber-se que estava no país dos anões. Segundo a sua memória, era ele ainda uma criança quando, tinha pela primeira vez, ouvido um conto sobre este país: os seus habitantes eram inteligentes e sabiam fabricar diversos instrumentos e, na época do imperador Yao, as autoridades deste país tinham enviado alguns dos seus habitantes presentear o soberano com uma flecha "sem plumagem estabilizadora" - o imperador Yao elogiou-os largamente por tal e maravilhosa invenção.

Segundo reza uma lenda, os inimigos mais cruéis dos anões eram os grous brancos. Todos os anos, na época da colheita, esses grous convergiam, voando de outras ilhas, para o país dos anões, comendo-lhes as plantações e, inclusive, bicando-os impiedosamente. Para debelar tal calamidade, o imperador Yao mandou uns anões a um país chamado Da Qin, pedir a ajuda dos seus habitantes, que eram uns gigantes com cerca de 30 metros de altura. Graças à proteção efetiva prestada por estes gigantes, os graus brancos nunca mais se atreveram a vir molestar os anões, levando estes, então, uma vida de paz e tranqüilidade.

Segundo outros mitos relativos à história dos Países Imaginários, existiam ainda alguns outros países de anões, sendo o Estado de Gu Guo - situado ainda mais para além do Mar do Oeste - um deles. Os seus habitantes tinham a altura, em média, de umas seis ou sete polegadas, sendo muito cultos e civilizados. Sabiam ler e escrever, eram extremamente corteses e hospitaleiros e, seguindo os preceitos cerimoniais da antiga China, também eles se ajoelhavam, respeitosamente, perante o rei ou os idosos, quando recebidos por estes. E para além disso, os habitantes deste país possuíam ainda, capacidades sobrenaturais, tais como: deslocavam-se com a velocidade do vento e viviam até cerca de 300 anos, sendo o cisne, o único animal capaz de os matar. Os cisnes destas paragens eram aves grandes e ferozes que tinham prazer em picar e engolir os anões mas, mesmo depois de serem engolidos, por vezes, ainda continuavam sobrevivendo no estômago destes animais. Segundo uma lenda, uma vez, após um caçador ter morto um destes cisnes, ouviu gritos provenientes das suas entranhas. Cheio de curiosidade, o caçador abriu a ave ao meio e, subitamente, de dentro dela, saltaram muitos anões. Por isso, as pessoas também costumavam apelidar esses anões de "homens-cisnes".

O País dos Imortais, do Shanhaijing (Clássico das Montanhas e dos Mares)

No decurso das suas viagens marítimas, Da Yu teve a oportunidade de visitar uns países onde viviam os imortais.

Segundo uma lenda, para além do Mar do Norte, havia uma ilha chamada Wu Ji (sem descendentes), os seus habitantes eram imortais e sem descendentes. Eles moravam em grutas, nas montanhas da ilha e comiam exclusivamente um tipo de peixe, desconhecido presentemente, que se chamava "peixe voante". Como os habitantes deste país eram assexuados, logicamente, não se casavam nem constituíam famílias. Após terem vivido um certo número de anos, os habitantes "morriam" temporariamente e, embora fosse prática comum, os seus cadáveres eram enterrados mas os seus corações continuavam a bater e os seus corpos não apodreciam. Depois de um período de gestação, de cerca de 120 anos, os "mortos" ressuscitavam e continuavam vivendo e assim iam vivendo e "morrendo" alternativamente; a população mantinha-se constante e o país era extremamente próspero.

Para além do Mar do Sul, havia uma outra ilha semelhante à primeira, chamada de A Xing, por todos os seus habitantes terem o mesmo sobrenome de A. A cor da sua pele era preta, e, fisicamente, eram bem constituídos, cheios de vigor e de juventude, e com o dom de poderem viver eternamente, por se alimentarem exclusivamente de frutos das árvores imortais e se refrescarem nas águas da Fonte Vermelha. Graças às árvores imortais e à Fonte Vermelha, os animais que viviam neste país eram, igualmente, imortais, existiam morcegos com mais de mil anos, sapos com dez mil e muitos outros.

Para além do Mar do Oeste, existiam, ainda, dois países dos imortais: o primeiro chamado de Huangdi e o segundo chamado dos Brancos. O Estado de Huangdi, estava situado, adjacente, à Montanha de Qingshan, sendo a fisionomia dos seus habitantes muito estranha, pois tinham cabeças humanas e corpos de jibóias. Segundo uma lenda, numa guerra que tinha outrora entre Huangdi e Chiyou, o povo deste país tinha ajudado os de Huangdi a vencerem o demônio de Chiyou ganhando assim méritos militares. Após a vitória, os habitantes de Huangdi construíram um outeiro ao qual chamaram de Outeiro de Huangdi, significando deste modo que ambos os povos deste país e de Huangdi, tinham saído igualmente vitoriosos sobre os de Chiyou. Os seus habitantes podiam, pelo menos, viver até 500 anos, sendo muitos os homens que contavam mais de dois mil anos de idade. Os habitantes do Estado dos Brancos tinham os seus cabelos e peles tão brancos como a neve e possuíam também uma prolongada longevidade. Segundo uma lenda, neste país viviam um gênero de animais sobrenaturais que se chamavam Cheng Huang e tinham o corpo coberto de pêlos dourados, uma longa e grossa cauda, fisionomia de raposa, dois chifres sobre o dorso e eram capazes de correr tão depressa como o vento, sendo, portanto, também apelidados de Fei Huang (Amarelos Velozes). Se alguém montasse um deles por só uma vez que fosse, já poderia viver, pelo menos, por mais dois mil anos. A origem do provérbio chinês que diz: "Que alcance a tua boa sorte com a velocidade de um Fei Huang" provém do conto acima mencionado.

O País dos Manetas, do Shanhaijing (Clássico das Montanhas e dos Mares)

No pólo Oeste da Terra havia um país de manetas. Todos os seus habitantes eram manetas, sendo, no entanto, o único braço que possuíam, extremamente longo. Quando se punham de pé, o braço chegava-lhes aos calcanhares. Outra das suas particularidades era terem três olhos, cada qual com um respectivo uso diferente: o esquerdo, para ver coisas de dia, o direito, para distinguir coisas de noite e o do centro - tal como um telescópio - para observar com nitidez objetos muito distanciados. Como estes três olhos, podiam descansar por turnos. Os habitantes deste país tinham capacidades de trabalharem ininterruptamente, dia e noite.

Eram todos dotados de grande habilidade e inteligência e, embora fossem manetas, tinham inventado e fabricado muitos armamentos maravilhosos: catapultas, capazes de abaterem mesmo as aves mais velozes e, arcos e flechas extraordinários, que atingiam os animais mais ardilosos - as suas refeições eram sempre constituídas por diversas e saborosas carnes.

A carruagem voante era um dos mecanismos mais maravilho- sos que tinham inventado. Nos anais da história da China não se encontra registrada a estrutura desta carruagem mas, conforme narra uma lenda, ela foi feita seguindo a imitação da Ave das Duas Cabeças e do Cavalo da Boa Sorte. O pássaro tinha plumas vermelhas e amarelas e voava batendo as suas duas amplas asas com movimentos cadenciados, a cauda, mais parecendo um leque gigantesco, e as suas duas cabeças - uma na parte anterior, e outra, na posterior - permitindo-lhe perscrutar os céus em todas as direções ao mesmo tempo. O corcel era um puro-sangue com o dorso listra- do de branco, crinas vermelhas, olhos brilhantes como ouro, capaz de saltar tão alto quanto as nuvens, e correr à velocidade de um relâmpago. De acordo com ambos os aspectos destes dois animais, e, recorrendo a estruturas de madeira, a plumas e a outros materiais, os habitantes deste país conseguiram fabricar muitos veículos semelhantes à carruagem voante, ficando capacitados a locomoverem-se com igual facilidade, tanto sobre a terra, como entre as nuvens e brumas e ultrapassavam obstáculos tais como, rios e montanhas.

Durante a sua estadia no país dos manetas, Da Yu foi convidado a visitar, na carruagem voante, todas as paragens do pólo Oeste, sendo, depois transportado de regresso às Planícies Centrais da China num abrir e fechar de olhos, apesar de a distância percorrida ter sido de centenas de milhares de li.

O País dos Homens de Longos Braços, do Shanhaijing (Clássico das Montanhas e dos Mares)

Ao sul do país dos manetas havia um outro país: o dos homens de longos braços. A estatura dos seus habitantes era, mais ou menos, a mesma que a dos humanos, no entanto, os seus braços tinham cerca de dez metros de comprimento. Quando, não sabendo como e onde haveriam de colocar os seus braços, eles reclinavam-se nos mais altos troncos das árvores deixando-os pendurados por entre as ramagens, tal como os orangotangos.

Quando queriam comer, os seus braços permitiam-lhes apanhar as frutas das árvores mais altas e, quando queriam pescar, sentavam-se na orla marítima e estendiam os seus longos braços sobre as ondas, apanhando, agilmente, uma quantidade de peixes e camarões, suficientes para lhes matar a fome. No entanto, como quando pretendiam pescar maiores peixes, tinham de se fazer ao largo e enfrentar o mar alto, costumavam pedir a ajuda dos habitantes dum outro país vizinho: o país dos homens das pernas compridas.

O corpo dos habitantes deste país era, mais ou menos, o mesmo que o dos humanos, contudo, as suas pernas eram muito compridas e finas, assemelhando-se a um grande compasso. Quando, portanto, os homens de longos braços queriam pescar grandes peixes no mar alto, iam, freqüentemente, ao país vizinho pedir cooperação e, empoleirando-se aos ombros dos homens de pernas compridas, penetravam, conjuntamente, no mar alto pondo, assim, em pleno funcionamento, sincronizado, as suas respectivas capacidades de pesca. Isto vem demonstrar o talento e a inteligência dos povos de ambos os países que, não só sabiam aproveitar ao máxi- mo as suas próprias vantagens, como, também desenvolveram métodos de se compensarem mutuamente.

O País dos Homens Aves, do Shanhaijing (Clássico das Montanhas e dos Mares)

No Sudeste da China havia uma região fronteira ao Mar do Sul, coberta de montanhas sulcadas por inúmeros vales de pujantes florestas, onde viviam um número sem fim de raras e atraentes aves. Dentre todas, a fênix era a mais rara e maravilhosa, com a sua longa cauda de plumas multicores e um trinar mais agradável que todos os instrumentos musicais. Tradicionalmente, a fênix era um símbolo de santificação e pureza, pois, comia somente bambu, bebia apenas água da fonte cristalina e não pousava em nenhum outro lugar a não ser na estercúlia. Era realmente uma ave mágica excepcionalmente vislumbrada! Desde os tempos mais remotos que os homens tinham considerado a sua aparição e imagem como símbolo de boa sorte e pacífica harmonia. No entanto, este país abundava em fênix que voavam por toda a parte juntamente com os outros pássaros, também lindos e preciosos. Existia aqui exclusivamente uma espécie de pássaros que, por só terem uma asa e um olho; só podiam voar em pares, os quais eram chamados "aves acasaladas" e tidos como símbolo do amor eterno e da perfeita união.

Um dia, cansado por uma longa marcha, Da Yu ao sentar-se debaixo duma árvore para repousar, ouviu uma voz sussurante entre a densa ramagem e, levantando a cabeça, apercebeu-se de um par de jovens conversando enlevadamente. Como a folhagem era muito compacta os jovens não se tinham apercebido da chegada de Da Yu e este, aproveitando-se da ocasião e querendo perguntar-lhes a configuração da terra e a direção do caminho que devia prosseguir, dirigiu-lhes umas palavras de saudação, mas os dois jovens, sentados nas ramas altas, em vez de descerem pelo tronco da árvore como seria normal, subiram ainda mais e, esvoaçando em redor da árvore, aterraram lentamente na sua frente. Foi só nesse momento que Da Yu descobriu que cada um deles tinha um par de asas.

Em verdade, eles dois eram habitantes do país dos homens-aves. Todos os habitantes desta região tinham asas e podiam escolher entre andar ou voar a qualquer momento, estando também munidos com uma boca em forma de bico e eram ovíparos.

Os homens-aves viviam de pesca e costumavam voar em largos bandos sobre o mar, sendo tão ágeis como gaivotas e bastando-lhes pouco tempo apenas para pescarem muitos peixes. Graças às suas bocas em bico, podiam facilmente apanhar e transportar os peixes para a praia onde, depois sentados, em redor duma fogueira, comiam alegremente as suas saborosas presas.

Os homens-aves gostavam também de dançar e quando chegava a primavera e as flores desabrochavam, reuniam-se num soberbo lugar da floresta onde dançavam e cantavam celebrando, assim, o começo do novo ano estival. As fênix nunca deixavam de vir e assistir a estas festas, o seu magnífico trinar era maravilhoso, mais que qualquer música concebível. Homens e mulheres, velhos e novos, todos dançavam, e quando as celebrações chegavam ao apogeu, as fênix, por vezes, participavam abrindo as suas largas caudas multicolores, batendo o ritmo a compasso. Era então um espetáculo maravilhoso!

Demônios e Feras Bestiais, do Shanhaijing (Clássico das Montanhas e dos Mares)

Durante uma prolongada viagem, Da Yu visitou nove continentes e atravessou quatro mares, no entanto, nem todos os lugares por onde passou eram acolhedores: na realidade, algumas destas regiões eram habitadas por demônios hostis e feras bestiais.

Na extremidade do Mar do Sul, havia uma região toda em chamas, habitada por demônios de cara humana e corpos peludos, monstruosos, que das suas bocas gigantescas lançavam constantemente labaredas e fumo, atacando, assim, os animais, as aves e mesmo os humanos.

Na costa do Mar do Sul havia, ainda, um país de homens-crocodilos tendo os seus habitantes uma cabeça humana, a bocarra dos crocodilos, o corpo coberto de densos pêlos pretos e, mais estranho ainda, dois gigantescos pés virados para trás. Se encontrassem alguém, primeiro lançavam uma terrível gargalhada para depois saltarem sobre o desgraçado engolindo-o por completo. Estes demônios vagabundeavam pelas florestas levando com eles flautas de bambu que tocavam produzindo uma melodia dolente.

Entre os países imaginários havia uns mais inacessíveis que outros, tais como: o dos homens zarolhos - cujos habitantes só tinham um olho localizado verticalmente no centro do rosto, o dos homens dos peitos furados, o dos homens com três cabeças - cujos habitantes podiam olhar em três direções ao mesmo tempo e pronunciar simultaneamente três vozes diferentes.

No que se refere às feras bestiais, os países imaginários possuíam numerosos e diversos gêneros, das quais só citaremos aqui algumas.

Havia umas chamadas Qiong Qi, semelhantes aos tigres, mas com duas asas gigantescas. Eram tão gananciosas quanto cruéis e quando conseguiam capturar um ser humano começavam a roê-lo pela cabeça e acabavam nos pés, engolindo mesmo todos os seus ossos e cabelos.

Havia um gênero de raposas com nove caudas aparentemente esbeltas e encantadoras, de focinho pontiagudo, pêlos dourados e espessas caudas, mas que, na realidade eram extremamente manhosas, podendo-se metamorfosear em terríveis criaturas, transformando-se, por vezes, em figuras de lindas jovens que atraíam os homens devorando-os depois.

Nas florestas das montanhas do Norte da China havia um gênero de borboletas vermelhas, do tamanho de elefantes, que sobre- viviam sugando o sangue de outros animais.

Uma outra fera bestial era um gênero de abelha venenosa de cor preta que, quando esvoaçava, emitia um zumbido que se transmitia a vários quilômetros de distância, sendo a sua picada muito dolorosa e o veneno dela, mortal.

Em certas regiões meridionais vivia à beira dos lagos um animal extremamente venenoso chamado Yu, que tinha apenas três polegadas de comprimento mas uma carapaça tão dura como uma tartaruga. Era um ser extraordinariamente sinistro e cruel que habitualmente se escondia nos lugares sombrios esperando a passagem de uma presa fácil. Se alguém passasse pelas vicinalidades donde estava embuscado, o animal abria a sua boca lançando um jato venenoso quer sobre a pessoa, ou no seu reflexo, na água, causando-lhe assim uma morte violenta. No entanto, graças à existência dum país adjacente a esta região, cujos habitantes eram bons caçadores, apreciavam comer a carne dos Yu conjuntamente com legumes, estes animais estavam em vias de extinção e os humanos estavam menos ameaçados.

Segundo umas lendas antigas, depois de dominar as águas, os povos de todo o mundo passaram a respeitar Da Yu como o salvador da humanidade, elegendo-o como o seu soberano. Para se precaver da latente ameaça dos demônios hostis e das feras bestiais aos seres humanos, Da Yu ordenou que todos os lugares onde se produziam objetos de ferro e bronze tinham que entregar uma determinada quantia das suas matérias-primas para com estas se fundirem nove trípodes gigantescos nos quais, baseando-se nas experiências e recordações de todas as suas viagens, ele fez cinzelar todas as figuras de demônios e feras bestiais assim corno as suas regiões de origem de modo a ajudar a humanidade a precaver-se melhor contra estes.

As Ilhas dos Imortais, do Shanhaijing (Clássico das Montanhas e dos Mares)
Antigamente, os mares eram tão impetuosos, que as suas altíssimas ondas podiam alcançar o Céu e tão vastos, que milhares e milhares de rios desembocavam neles dia e noite - até mesmo as águas do Rio Celeste (Via Láctea) corriam para eles. No entanto, os mares nunca transbordaram. Porque é que os mares eram então assim? Uma lenda conta que a dezenas de milhares de li, a leste do Mar Bohai, havia um grande vale submerso chamado Gui Xu - que significa o "lugar de retorno das águas" -, na realidade tratava- se de um vale sem fim. Na vasta superfície marítima do "lugar de retorno das águas" havia cinco ilhas flutuantes de alcantiladas e majestosas montanhas: Daiyu, Yuanjiao, Fanghu, Yingzhou e Penglai. Para chegar aos píncaros de qualquer uma destas montanhas era preciso seguir serpentuosos caminhos - o menor dos quais tinha mais de trinta mil li -, que desembocavam em amplos planaltos - cada um com cerca de nove mil li de periferia. As cinco ilhas estavam alinhadas no mar, distanciadas umas das outras de setenta mil li, na lonjura, frações dos seus altos picos aparecendo entre nuvens auspiciosas e, nos tempos mais claros, podia-se mesmo ver os perfis dos seus magníficos pavilhões e palácios.

As ilhas eram conhecidas pelas cinco Ilhas dos Imortais, por nas suas cinco montanhas se situarem as residências dos imortais, constituídas por palácios e pavilhões de ouro e jade. Nas encostas das suas montanhas cresciam numerosas flores e raras árvores de fruto e todos os animais e aves que aqui habitavam, eram tão brancos como a neve. Uma árvore, em particular, produzia pérolas e uns frutos muito brilhantes, em forma de cristais, a ingestão de um só dos quais transformava qualquer ser humano num imortal. Todos os habitantes destas ilhas eram imortais e descendentes do Imperador Celestial possuindo os dons, quer de ascenderem às nuvens, ou de vagarem de ilha para ilha, conforme quisessem.

Embora a altitude de cada uma das montanhas fosse colossal, estas cinco ilhas eram flutuantes e deslocavam-se perpetuamente para o Oeste, como se fossem gigantescos navios, o que causava grande preocupação aos seus imortais habitantes, pois se continuassem na sua inexorável progressão, seriam arrastadas até ao pólo Oeste, o qual, segundo uma lenda, era um lugar extremamente frio e sombrio onde nunca tinha aparecido nem o Sol nem a Lua, sendo a sua única fonte de luz, uma tênue claridade proveniente de uma vela segura na boca dum animal chamado de "dragão da vela" Numa palavra, o pólo Oeste era um lugar avassalador!

Um dia, os imortais das cinco ilhas decidiram subir ao Céu pa- ra relatarem conjuntamente as suas preocupações ao Imperador Celestial. Depois de os ouvir, o Soberano enviou um dos seus ministros, o deus dos mares chamado Yu Jiang, resolver o problema. Yu Jiang mandou então que 15 gigantescas tartarugas carregassem, às costas, essas cinco ilhas para a eternidade, no entanto, para lhes aliviar o cansaço, o deus dividiu-as em três turnos alternando-os cada 60 000 anos. Claro que a missão de carregarem às suas costas as ilhas era um trabalho extremamente duro, mas as 15 tartarugas não tinham outra alternativa senão obedecerem às ordens de Yu Jiang e, assim, passaram a suportar as montanhas esticando as suas cabeças à tona das ondas e não se atrevendo a deslocarem-se minimamente. A partir de então as cinco ilhas, originalmente flutuantes, permaneceram estáticas desafiando as furiosas ondas, as impetuosas correntes e os freqüentes tufões e os seus imortais habitantes vivendo dias tranqüilos sem mais nenhumas preocupações.

Contudo, tal como os seres humanos, os imortais também vieram a encontrar alguns percalços imprevistos. A uma distância de 46 000 li da costa do Mar do Leste havia uma montanha chamada Bogushan ao pé da qual, havia um país de gigantes chamado, o Estado dos Dragões. Todos os seus habitantes eram tão altos que quase alcançavam o Céu e alimentavam-se principalmente de grandes peixes e tartarugas-gigantes marítimas.

Ora certo dia, alguns dos gigantes, tendo ido à pesca nas costas do Mar do Leste, subitamente aperceberam-se que algumas tartarugas gigantescas apareciam e desapareciam por entre as altas ondas marítimas esticando as suas cabeças fixamente. Bastavam-lhes dar alguns passos para atravessarem as águas duma longa distância lançando então as linhas com as iscas para as águas onde trabalhavam as tartarugas. As tartarugas, que não tinham comido nada durante várias dezenas de milhares de anos, ao verem alimento esticavam imediatamente os seus pescoços e tragavam as iscas. Então, aos gigantes do Estado dos Dragões bastou-lhes puxarem as linhas para as apanharem e depois de comerem as carnes secaram ainda os seus ossos fazendo-os em lascas e utilizaram as suas carapuças como tetos de tendas abrigando-se assim melhor contra o vento e a chuva. Logo após a morte das seis tartarugas duas das cinco ilhas, as Dayu e Yuanjiao, perdendo o seu suporte, recomeça- ram a flutuar imediatamente em direção ao pólo Oeste. Os imortais destas duas ilhas apercebendo-se do que estava acontecendo, emigraram apressadamente para as outras que ainda se mantinham imóveis não tardando que, pouco tempo depois, ambas as ilhas Da-yu e Yuanjiao fossem arrastadas pelas impetuosas correntes e pelos incontáveis tufões para o pólo Oeste vindo-se a afundar nas profundezas marítimas.

O que aconteceu provocou tamanha cólera ao Imperador Celestial que, para castigar os gigantes do Estado dos Dragões e valendo-se dos seus poderes sobrenaturais, ele reduziu não só a ex- tensão deste pais como a estatura dos seus habitantes. Mesmo assim, diz-se que eles continuaram com uma altura de cerca de dez metros, a qual, se bem que fosse ainda considerável pelo menos impedia-os de pescarem à linha quaisquer outras tartarugas-gigantes.

A partir de então, no Mar Bohai restaram só três ilhas de imortais: Fanghu, Yingzhou e Penglai. No período dos Reinos Combatentes (475-221 a.n.e.) os monarcas dos reinos de Qi e Yan vieram a saber da existência destas três ilhas dos imortais e de nestas se encontrar o elixir de imortalidade. Querendo gozar eternamente das glórias e riquezas que tinham acumulado, estes dois reis ordenaram aos seus súditos que fabricassem várias centenas de grandes embarcações e que partissem em demanda destas ilhas com o fim de obter o elixir de imortalidade. Contudo, pouco tempo após a partida da expedição, uma grande tempestade de gigantescas e furiosas ondas fez com que todos os barcos se afundassem, só poucos homens conseguiram escapar da tragédia. Segundo os relatos dos sobreviventes, após vários dias de navegação todos tinham efetivamente conseguido vislumbrar as três ilhas dos imortais pairando entre densas nuvens brancas e flutuando alinhadas nos confins do mar mas, quando os barcos se aproximaram delas, as três ilhas tinham misteriosa e subitamente desaparecido. E tinha sido quando os barcos persistiram em continuar na direção das ilhas desaparecidas, que uma tempestade furiosa se abateu bruscamente impedindo o avanço das embarcações e fazendo-as capotar no seio das al- tas ondas. Ninguém podia confirmar se esses relatos eram verdadeiros ou não, mas a verdade é que nenhum dos reis que tentaram obter o elixir de imortalidade veio a alcançar o seu objetivo e, naturalmente, acabaram por morrer uns após os outros.

Segundo a lenda, o imperador Qin Shi Huang - o primeiro imperador da Dinastia Qin - em plena satisfação pela sua unificação da China (221 a.C) também sonhava em ser um imortal. Sob os auspícios dos seus ministros e demais subordinados, ele viajou, pessoalmente, para a montanha Huiji organizando neste local uma enorme oficina, onde algumas dezenas de milhares de trabalhadores vieram a fabricar cerca de mil embarcações, após a sua conclusão, o monarca obrigou um número considerável dos seus homens a navegar em direção às ilhas dos imortais em busca do elixir da imortalidade. No entanto, este seu colossal empreendimento também não logrou obter bons resultados e, inclusivamente, nenhum dos seus enviados regressou à terra natal. Por ironia do destino o imperador Qin Shi Huang veio a morrer no caminho do regresso da montanha Huiji à sua capital.

Durante a Dinastia Han, no reinado de Wu Di (156-87 a.n.e.), um ocultista chamado Li Shaojun contou um dia ao imperador que, encontrando-se uma vez viajando numa rota marítima, tinha travado conhecimento com um imortal chamado An Qi Shen que estava comendo uma jujuba, tão grande como uma melancia, sendo o suco desta fruta realmente o elixir mágico das montanhas do além-mar. Impressionado pelas palavras do ocultista, o Imperador Wu Di ordenou que um exército de homens fabricasse embarcações, enviando depois um grande número dos seus subordinados nestas à procura do elixir da imortalidade. Contudo passaram-se meses e anos e até à sua morte o imperador esperou sem receber quaisquer notícias da expedição marítima.

Desde então até agora, o conto sobre as Ilhas dos Imortais permanece tal como uma lenda sem que ninguém pudesse confirmar a existência de tais ilhas!